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Noel Nutels: uma vida dedicada aos esquecidos
Última modificação: 29/09/2020 | 12h00

foto: Arquivo Nacional
Entre os anos 40 e 60 o cenário do Brasil passava por uma grande transformação. Estimuladas por grandes movimentos migratórios internos, as cidades cresceram e se modernizaram. Foi o auge de Assis Chateaubriand, das chanchadas da Atlântida, do nascimento da indústria automobilística, da popularização do samba e do surgimento da bossa nova. Nesse cenário de cada vez maior destaque para grandes cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife, um médico chamado Noel Nutels resolveu tomar a direção contrária. Ele buscou se preocupar com as populações indígenas e rurais no interior de um país que começava a se conhecer por inteiro.
Nutels nasceu na cidade de Ananiev (na época Rússia, hoje Ucrânia) em 24 de abril de 1913. Em 1920, sua família mudou-se para o Recife (PE) e, pouco depois, para o interior de Alagoas (na cidade de São José da Laje), onde o futuro médico concluiu o ensino básico. Voltou para Pernambuco, em Garanhuns, para concluir sua formação escolar em um colégio católico e formou-se em Medicina em 1936, na Faculdade de Medicina do Recife, onde especializou-se em tuberculose, uma das doenças que mais vitimaram pessoas pobres no Brasil nesse período.
Em Recife, Nutels teve contato com pessoas de diferentes meios, o que certamente influenciou a visão que teve da saúde pública dali para frente. No período em que cursava Medicina sua mãe fundou na capital pernambucana a famosa “Pensão da Dona Bertha”, ponto de encontro de intelectuais, onde Nutels conviveu com uma série de pessoas que teriam grande destaque no Brasil. Entre os nomes que conviveu na época estavam os escritores Ariano Suassuna e Rubem Braga, e os compositores Fernando Lobo e Capiba.
O caminho do indigenista
Nutels mudou-se para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil, para seguir o sonho de trabalhar com saúde pública. Esbarrou porém em um problema: para ingressar no serviço público precisava naturalizar-se brasileiro. O processo demorou quase dois anos, nos quais o médico teve que buscar diferentes empregos e passou por alguns problemas financeiros.
Foi em 1943, porém, que sua carreira tomou o rumo pelo qual seria conhecido. Nutels ingressou na Fundação Brasil Central (FBC), criada pelo governo de Getúlio Vargas para desbravar as regiões do Alto Xingu e Alto Araguaia, no movimento que ficou conhecido como “marcha para o oeste”. Por meio da Fundação participou - junto ao Marechal Cândido Rondon e os irmãos Cláudio, Leonardo e Orlando Villas-Boas - da Expedição Roncador-Xingu. A partir dessa expedição se tornou um grande defensor da preservação do patrimônio físico e cultural das populações indígenas, que ele descrevia poeticamente como “criaturas da natureza em harmonia com o cenário; com o mato, com o rio, com as borboletas que ali voejam, com os pássaros pousados nas árvores, com o céu azul“.
Desde esse momento, praticamente toda a produção acadêmica e profissional de Nutels refletiria essa preocupação com os indígenas, especialmente no campo do combate à tuberculose. A Expedição Roncador-Xingu deu origem ao Parque Indígena do Xingu, iniciativa de Nutels e dos Irmãos Villas-Boas que viria a ser oficializada em 1961. Alguns anos depois da expedição ele ingressaria no Serviço Nacional de Tuberculose (SNT), do Ministério da Saúde, serviço médico que levava atendimento aos povos indígenas e populações isoladas no interior do país.
Baseado nessa experiência Nutels idealizou e dirigiu, em 1956, dentro do Ministério da Saúde, o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA), que foi responsável por fazer levantamentos cadastrais, testes de tuberculose, vacinas, procedimentos odontológicos e programas de conscientização sobre saúde para as populações isoladas no interior do Brasil, inclusive na selva amazônica. Entre 1963 e 1964, ele ainda acumulou a direção do Serviço de Proteção do Índio (precursor da atual Fundação Nacional do Índio - FUNAI).
Nesse período há uma história peculiar que ilustra a visão ampla que Nutels possuía sobre a saúde pública. Para melhor explicar as causas, tratamento e prevenção da tuberculose para as populações rurais, Nutels encomendou um cordel do escritor João José da Silva, chamado “A fera invisível ou o triste fim de uma trapezista que sofria do pulmão”. Ele foi o diretor do SUSA até 1973, quando faleceu.
No plano acadêmico - entre mais de 50 artigos publicados - foi ele o responsável por elaborar o “Plano para uma campanha de defesa do índio brasileiro contra a tuberculose” (1952) e “Cadastro tuberculínico na área indígena”. Sua produção lhe rendeu reconhecimento dos pares, participação em diversos simpósios e congressos sobre tuberculose e saúde pública em geral, além da atuação como professor da Universidade de Brasília.
Avesso à burocracia e aos luxos comuns ao exercício da medicina no período em que viveu, Noel Nutels se embrenhou na floresta e no sertão para defender as populações indígenas e caboclas contra as doenças tropicais como a malária, leshimaniose e tuberculose, que ameaçavam a própria sobrevivência desses povos. Em um entrevista definiu-se: "Noel Nutels, médico de saúde pública, eu não clinico, não tenho consultório. Fazia malária e agora faço tuberculose. Mania principal: índio".
A importância de Nutels na saúde pública brasileira foi tão grande que lhe rendeu várias honras no campo da cultura. Carlos Drummond de Andrade, considerado um dos maiores poetas de língua portuguesa, publicou o poema “Entre Noel e os Índios” em sua homenagem poucos dias após o falecimento do sanitarista em 1973 (leia no box ao final da matéria). O premiado escritor Moacyr Scliar foi outro que se interessou pela rica história do médico (que era seu amigo) e a contou - com toques ficcionalizados - no romance “A Majestade do Xingu”.
Entre Noel e os Índios (poema de Carlos Drummond de Andrade) Em Vila Rosali Noel Nutels repousa do desamor alheio aos índios e de seu próprio amor maior aos índios. Como se os bastos bigodes perguntassem: Valeu a pena? Valeu a pena gritar em várias línguas e conferências e entrevistas e países que a civilização às vezes é assassina? Valeu, valeu a pena criar unidades sanitárias aéreas para salvar os remanescentes das vítimas de posseiros, madeireiros, traficantes burocratas et reliqua, que tiram a felicidade aos simples e em troca lhes atiram de presente o samburá de espelhos, canivetes, tuberculose e sífilis? Noel baixa de helicóptero e vê a fome à beira d’agua trêmula de peixes. Homens esquecidos do arco-e-flecha deixam-se consumir em nome da integração que desintegra a raiz do ser e do viver. “Vocês têm obrigação de usar calça camisa paletó sapato e lenço, enquanto no Leblon nos despedimos de toda convenção, e viva a natureza...” Noel, tu o disseste: A civilização que sacrifica povos e culturas antiquíssimas é uma farsa amoral. O Parque maravilha do Xingu rasgado e oferecido ao galope das máquinas, não o quiseste assim e protestante como se fosse coisa tua, e era pois onde um único índio cisma e acende fogo e dança a dança milenar extra-Conservatório e desenha seu momento de existir longe da Bolsa, da favela e do napalm, aí estavas tu, teu riso companheiro, teus medicamentos, tua branca alegria de viver a vida universal. Valeu? Valeu a pena teu cerne ucraniano fundir-se em meiga argila brasileira para melhor sentires o primitivo apelo da terra moldura natural de homens xavantes e kreen-akarores lar aberto de bororos carajás e kaingangs hoje tão infelizes pela compulsão da felicidade programada. Valeu, Noel, a pena seguir a traça de Rondon e de Nimuendaju, mãos dadas com Orlando e Claudio Vilas-Boas sob o olhar de Darcy Ribeiro, e voar e baixar e assistir e prover e alertar e verberar para que fique ao menos no espaço este signo de amor compreensivo e ardente que foi a tua vida sertaneja, a tua vida iluminada, e tua generosa decepção. |